O amor ao próximo

INTRODUÇÃO


O trecho do livro de Mateus capítulo 5, versículos de número 43 a 48 faz parte de uma série de discursos sobre a “promulgação do Reino de Deus”, uma espécie de teses necessárias e fundamentais para compreender o Reino dos Céus. Assim como Moisés fez uma espécie de “promulgação dos mandamentos de Deus”, com o objetivo de fundamentar a vida de fé do povo israelita, Jesus também fez uma série de discursos com o objetivo de apresentar os principais fundamentos do Reino de seu Pai. Nesse sentido, o centro do quinto capítulo, especificamente nos versículos mencionados acima, é a reinterpretação de um dos principais mandamentos da tradição mosaica: “Amar o próximo como a ti mesmo” (Mateus 19.19). Esse era o princípio fundamental para cumprir parte do decálogo de Moisés.


1. Ser amado


No livro de Mateus, Jesus é apresentado como um dos intérpretes da tradição, embora faça suas interpretações de modo muito diferente das que até então estavam sendo feitas. Ele resume a Lei em dois principais blocos: o bloco que contém as observações da relação com Deus e o bloco que contém as observações sobre a relação entre as pessoas. No segundo bloco, Jesus propõe a ampliação da relação com outro, isto é, o próximo não deveria ser apenas um/a israelita. As relações deveriam ser pensadas para além das lógicas da justa medida e da perspectiva da retribuição. Ele estava querendo problematizar aquilo que era de mais fundamental para a consciência de um judeu e uma judia de sua época: o cumprimento da Torá. A expressão de uma vida reta, justa e perfeita era a capacidade de cumprir rigorosamente a Torá e, com isso, a pessoa era digna de ser amada e considerada “próxima”.


Jesus estava apresentando uma nova “agenda da perfeição”. Uma agenda que, na verdade, não era inédita. Ela apenas convocava as pessoas para o cumprimento da Torá em sua radicalidade. Eles deveriam enxergar a Torá para além das perspectivas vigentes naquela época. O próximo não deveria ser compreendido apenas pela lógica da retribuição e do mérito, condições que inviabilizam a compreensão da graciosidade do Reino dos Céus e suas lógicas. Assim, o discurso de Jesus nesse trecho nos leva a fazer a seguinte pergunta: Como é possível ser perfeito ou perfeita na perspectiva do Reino dos Céus?


2. Amor e justiça


Ao ler esse texto, você não pode deixar de considerar dois aspectos. O primeiro é a relação existente entre o conceito de amor e o conceito de justiça. A partir do discurso de Jesus, a ideia de amor aparece sempre conectada à justiça. No entanto, a compreensão de justiça apresentada por Jesus difere da ideia de justiça vinculada à lógica da retribuição e do mérito. O segundo aspecto tem a ver com a ideia de que a noção de amor, conforme o Reino dos Céus, não se resume apenas a uma experiência subjetiva e emocional, tal como no pensamento grego.


O amor, de acordo com o discurso de Jesus, é uma postura diante do outro. Em outras palavras, poderíamos afirmar que existe uma racionalidade do amor, uma forma de pensar a vida com o outro a qual não é baseada somente nas reações emocionais, pois elas sempre são circunstanciais. O amor seria uma prática de reconhecimento do outro como uma das imagens de Deus no mundo. Com isso, o texto não tem a intenção de afirmar que o amor é um “sentimento legal” que devemos ter por todas as pessoas.


3. A reverência do amor


O texto rompe com a noção mais subjetivista e intimista de amor como um sentimento localizado no coração da pessoa. O texto propõe que o amor é uma forma de considerar o outro em sua máxima reverência, respeito e profunda consideração enquanto ser humano. É uma postura tão radical de perceber o outro a tal ponto que mesmo sendo distante de mim, ele é comum à mim, ele me é familiar. Essa é a mensagem que Jesus propôs para os seus discípulos e discípulas ao dizer “Vocês ouviram o que vos foi dito: ame seus amigos e odeie os seus inimigos. Eu porém vos digo: amem os seus inimigos e orem pelos que vos perseguem” (Mt 5.43-44). Por essa perspectiva, amar deixa de ser uma resposta emocional e passa a ser uma postura de vida. O amor deixa de ser meritório e passa a ser uma postura que independe da prática de ações justas.


É importante lembrarmos disso, pois para uma cultura que se constituiu pelas lógicas da justiça, compreende o amor como um direito, o respeito como uma conquista que pode ser alcançada de acordo com o cumprimento dos preceitos religiosos, éticos e morais. Era como se aqueles que “vivem bem” são dignos de nosso amor e aqueles que não “vivem bem” fossem dignos de nosso ódio. Jesus vai exatamente na oposição dessa lógica e propõe um outro caminho: amar é uma postura (racional) diante do outro e não um sentimento. Somente a partir disso, torna-se possível mensurar as pessoas a partir daquilo que nos é comum: somos todos filhos do mesmo Pai e Ele deseja que todos possamos viver o seu Reino.


É necessário que possamos nos relacionar para além dos conceitos de mérito e de retribuição. Disso depende a qualidade das nossas relações e, ao mesmo tempo, afina a nossa vida com a mensagem do Reino de Deus. Por isso, é preciso compreender que o amor é muito mais do que um sentimento. É uma forma de ler e compreender o mundo e produzir relações com os outros. Só assim conseguiremos construir uma sociedade menos violenta e relações mais formidáveis. Assim, viver por amor é mais belo do que viver pela justiça e pelo mérito. Esse é o único caminho para alcançar a perfeição conforme o Reino dos Céus.


C.S. Lewis é um dos maiores literários cristãos entre os séculos XIX e XX. Suas obras nos chamam atenção pela capacidade artística e brilhantismo poético, apresentando conceitos teológicos densos e complexos. Um dos seus escritos que nos auxilia a compreender a natureza do amor, tanto o divino quanto o humano, é o livro intitulado “Os quatro amores”, publicado recentemente pela editora Thomas Nelson Brasil. A leitura desse livro lhe auxiliará a compreender, de modo simples, algumas das principais discussões históricas sobre as concepções de amor.


4. CONSIDERAÇÕES FINAIS


O principal conceito teológico desse trecho bíblico é a graça, isto é, só é possível compreender o amor à luz do Reino de Deus a partir da dinâmica da graça, pois somente por ela podemos constituir relações de gratuidade, relações que excedem a justiça e o mérito. Portanto, amar o outro segundo o Reino dos Céus não é uma questão de mérito ou de justiça, mas sim uma postura de reverência ao outro.  A perfeição, na perspectiva do Reino dos Céus, está na capacidade de amar o outro e não de cumprir uma série de princípios religiosos que produzem perspectivas de mérito e retribuição.

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